história do zero e o um: retrospecto da potência ciberfeminista por sadie plant

esta é a história do zero e um. mas também a história das mulheres. da primeira tecelagem. dos simultâneos. da intuição. esta é uma história ciborgue. das máquinas. das mulheres e das máquinas. ciranda. a boniteza do buraco. o soco do vazio que é tudo. enigma. das ciberfeministas. das bruxas. de diana, ísis, cibele. de grace hopper. ada lovelace. da linguagem. do código. da quebra. do vírus. da criação. do zero.

vns matrix

Em 1833, Ada Lovelace conhece aquela que chamaria de amiga, a máquina diferencial de Charles Babbage. Impressionada com esta, traduz, em 1842, um trabalho de Louis Manabrea, um engenheiro militar italiano, sobre a invenção. O texto repassado para a língua inglesa acabou recheado de notas de rodapé no que Ada imagina serem apenas comentários mas ultrapassavam em quantidade e qualidade as ideias gestantes do autor. Charles então a faz uma pergunta simples aparentemente. Se conhece tão bem o tema porque não fazer um trabalho original você mesma? – A ideia nunca me ocorrera, responde a condessa.

As próprias notas de rodapé, descentralizadas, periféricas, três vezes maior que o próprio texto, foram mais tardes reconhecidas. Ada havia feito o primeiro exemplar de um programa de computador. E mais. Trabalhando com um formato em rede de escrita, de certa forma estavam lá os hiperlinks que um dia fariam a internet. Uma malha. Ramificações que se encontram. O pensamento em rede que será a rede.

Sadie Plant nos mostra como este ofício exigido e aperfeiçoado pelas mulheres percorreu o ocidente e proporcionou o emaranhado tecnológico que vivemos hoje, um cenário onde a máquina e a mulher dialogam diretamente e sua dinâmica está no princípio das ações.

Nas ascensões capitalistas, as mulheres eram submetidas a uma participação rasa e escondida. Plant nos conta como podemos perceber como este ocidente aquincalhado em seu machismo ao mesmo tempo que esconde a potência da mulher acaba por descender dela. A mente paternalista sempre tentou domar os saberes por um lado que a ofusca, constrange, inibi.

No trabalho de Freud as mulheres não haviam agregado muito para a civilização por serem incapazes de ter clareza, serem lógicas, sem concentração. Isto se dava ao que achava ser uma deficiência, ao sexo que julgava vergonhoso. A explicação piora. Para inibir a visão da ‘vergonha’, a natureza as deu os pelos pubianos. A vergonha era o vazio. O vazio acriativo. Por isso a tecelagem. Similar ao véu dos pelos. Tecer para se esconder. Ao observar a filha Anna trabalhando com fios e pontos, o psicanalista viu sua proximidade com o tecer com a semelhança dos pelos que tudo fazem para esconder algo. A viu trabalhando com o vazio. Imitando a natureza dos fios de seu próprio órgão, o horror de não ter nada a ser visto, o véu. A mulher para ele estava condenada apenas a imitar.

Freud considerava a filha uma invertida. Não fazia nada de forma linear, praticava várias coisas ao mesmo tempo, tinha gosto por dar palestras de improviso, prazer por explosões de pensamento, viciada na invenção pela invenção, começa as coisas pelo fim. Era como uma engenharia inversa, uma hacker, diz Plant. um doce chamado mistério, lacuna, um enigma. Obviamente para ele isto não era um positivo mas um desvio. A herança da histeria levou muitas coisas, ada sofreu desta percepção aburrida. A alta capacidade de expressão, a excitação causada pelo pensar e busca pela descoberta, incapaz decalma, pela matemática e outros, foi explicada pelo médio em 1851 por uma ulceração no útero. Plant cita Luce Irigaray. As mulheres histérias se diziam ser famintas – elas queriam exatamente nada (e tudo).

O não visto, o nada. A história dos números pode ser uma história dos gêneros?
Dicotômico como o ocidente é a matriz da escrita dos computadores. o Código Binário é parte do alinhamento de Zeros e uns. São bits, alinhandos em oito posições, o que chamamos de bytes. Zero e um. luz e trevas. bem e mal. certo e errado. sanidade e loucura. vida e morte. ocidente e oriente. macho e fêmea. homem e mulher.

Este seria o signo perfeito do ordenário tradicional do ocidente. O visto e o nada. Algo e Vazio. O 1 mais 0 dá 1. Dá o masculino. O zero é a filha de Freud. É Ada. A ausência, que nada gera. O orifício. Falha. Defeito. Plant lembra palavras de Lacan – a mulher é o não-tudo, o não-1.

O zero é tão assustador que não poderia ter vindo da fortaleza cristã instalada no pensamento do ocidente. ele precisou ser importado, o que ocorreu a duras penas. O zero – a revolução que nos permitiu inúmeros feitos – veio da Índia, lido no ábaco, ali onde se ajeitava um espaçamento, uma virtualidade. Foram os árabes e indianos que implementaram no ocidente sistemas de cálculos e inclusive os algorismo que usamos hoje. Os dez símbolos vem da Índia para substituir a grossura dos números romanos, que não facilitam as operações. Em sua carona vem outras invisibilidades: os números irracionais, o ponto decimal.

O zero não é uma invenção que vem a calhar em uma cultura cristã. A filosofia cristã é a maximização do número 1. O deus único. Caminho único. O masculino. O universal para os gregos. O símbolo da identidade, átomo indivisível. Do outro lado temos o invasor: o zero era pagão, infiel, o buraco. A igreja bem que tentou mantê-lo de fora.

O zero e um na máquina de Babbage e Lovelace correspondia ao buraco e ao furo no cartão. ausência e presença. o mesmo ocorria em todos sistemas eletrônicos, como cartões perfurados pelas máquinas de tecelagem.

A tecelagem desde antes dos egípcios, neolíticos, era em muito feita por mulheres. O barbante, o fio, é multiuso, uma potência. A automatização desta prática gerou as primeiras indústrias doméstica, deu as mulheres formas de independência. Tecer era consideram um realizar complexo, interligado, antes mesmo da mecanização. Um trabalho de labirinto, no caos, triunfando em várias direções, como quem desvenda um mistério. A criação de uma rede. Não só a do tecido. Mas a rede social. Em volta dos instrumentos e máquinas mulheres se unem, conversa, contam histórias, fazem cultura -trabalham em rede. As mulheres escreviam no tecido, desenhavam nas grades de teceduras, era um legítimo feitiço. O tecido e a mão. O caldeirão. Mistério das feiticeiras.

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Além da complexidade do tecido outra função aparece ordenada as mulheres durante os avanços industriais. Plant apresenta que o lugar do micro, do tímido, foi de forma geral subordinado. Seja como secretárias ou enfermeiras – auxílios – assim como nas linhas de fábrica. Foram as mulheres que fabricavam os microprocessadores, os chips. As baixas operações, mais insignificantes e invisíveis, o que poderia ser de novo as notas de rodapé de Ada. Frente a elas outro binarismo: mão do estado e do capital perfeitamente integradas sobre elas.

Montar, tecer, conectar, ser alinear, atemporal. Se os computadores são os teares mecânicos da moderna revolução industrial, o software se assemelha ao trabalho do croché ou malha. A escrita do computador também era vista desta forma, a lembrar de Grace Hopper que escreveu um software para o primeiro computador programável. A lembrar de Margaret Hamilton, programadora do software da Apollo 11. E tantas outras. A teia da linguagem.

Em um mundo masculino a máquina e a mulher estão no lugar da alteridade a ele. Ser feminino é ser ciborgue. O ciborgue é tudo que não é o 1. É ir contra qualquer tipo de esteriótipo. A máquina deseja simular o humano. Existe algo que possa simular o feminino o masculino o humano? Existem os próprios? O autêntico começa a não ser importante, é o enfraquecimento do zero. Drag queens, Drag kings, travestis, fluídos. Não há caminhos únicos. O gênero único ou sexo único, o estável perde pro volátil, fluído: o corpo ao avesso agrupador de diversas velocidades.

A vida inteligente não pode mais ser monopolizada. Nada é tão mais definível unificado constante. Quimeras, híbridos máquina e organismo, teoria e fabricável, ciborgue. Plant nos fornece pistas, constelações, trabalha em rede, em pontos de forças e nos sugere voos. Foi ela a pessoa que primeiro criou este termo: ciberfeminismo. Movimento que nos anos 80-90, em meio a literatura ciberpunk, arte e exploração do ciberespaço, via a potência da retomada da rede pelas mulheres cujo pensamento a moldaram, como podemos ver no grupo australiano VNS MATRIX.  A máquina pela retomada do corpo. A antiga nova linguagem como disputa. A tecnologia traz o poder do zero. Aproxima a máquina das mulheres, as potencializando. Parte do zero. Foi o zero que possibilitou esta paisagem. Um futuro sem homens pois sem linguagem da violência. Toda emanação de ação possível da eroticidade corpo-máquina. – Se as máquinas podem se excitar porque não as mulheres? – O DNA mitocondrial, a base da programação. Estão borrados o gênero, a definição de vida. As amazonas retornam aos fronts, se abastecendo da linguagem que ajudaram a escrever,a aperfeiçoando como luta. Linguagem-corpo-rede.

A alquimista é o hacker. A bruxa-hacker-ciborgue. A máquina e a mulher estão ao mesmo lado. A máquina busca o humano, mas o humano é o erro. A mulher esta contra o binarismo do estado e capital. O bug também foi uma criação de uma mulher. Grace Hopper quando enxergou aquele grilo morto em meio da programação. O corte. A ruptura. Eram as mulheres que cuidavam das redes, de fios, de cabos telefônicos, de cabos de computador. Calcando a estrutura. A escrevendo. Eu sou o bug, diz o vírus. O gafanhoto é natural. Pedaços de códigos soltos que mutam. Feitiçam. Potência de transformação e resistência. O texto de Plant é um necessário lembrete do poder de nossa escrita, embora injustiças históricas, um pensamento em conjunto abridor de futuros viáveis.

CYBERFEMINIST MANIFESTO FOR THE 21ST CENTURY

We are the modern cunt
positive anti reason
unbounded unleashed unforgiving
we see art with our cunt we make art with our cunt
we believe in jouissance madness holiness and poetry
we are the virus of the new world disorder
rupturing the symbolic from within
saboteurs of big daddy mainframe
the clitoris is a direct line to the matrix
VNS MATRIX
terminators of the moral codes
mercenaries of slime
go down on the altar of abjection
probing the visceral temple we speak in tongues
infiltrating disrupting disseminating
corrupting the discourse
we are the future cunt

Manifesto first declared by VNS Matrix
1991, Adelaide & Sydney, Australia

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o livro em questão: ponto de voo



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