formas de enviar de emily dickinson: parte I

 

o início é infinito. às vezes quando leio um poema de dickinson é como se cada linha iniciasse de novo. como se não houvesse as linhas mas os círculos. não sei se podemos ligar com a ideia de circunferência que ela traz, mas, o cíclico rondeia por meio da sintaxe, dos travessões, dos cortes, da contagem de sílabas de cantos populares. um poema aqui são vários. cada um para um amigo, cada um com um clima, um jogo de palavras descartadas ou sugeridas, ao longo dos anos, dos humores. cada um com um corte de linha, respiração, ecologia. então há isso: relações. se pensarmos a ecologia como o estudo das relações dos vivos, os poemas se constrói na relação com seus destinatários, confidentes, acendedores de pensamento, paixões, virtudes. com os pássaros, os fungos, as luzes da índia, as madeiras do brasil, a vida e a morte enroscadas, os fantasmas perambulando pelos cômodos da casa, por dentro dos beija-flores, e as casas como uma reza aberta a todos.

 

 

uma vez li um poema para minha mãe enquanto ela lavava a louça. abri dickinson e não narro o poema mas o que lembro dele. era algo muito curto e explosivo que dizia algo como o polen das flores serem representantes consulares entre fronteiras. era extremamente bonito e por um segundo congelamos, como ela mesmo dizia (se sinto frio quando leio sei que isto é poesia). era uma pedra de beleza quebrando o vidro triste do dia. o poema não dizia lembro disto mas ele nos dava esta imagem onde o encontro parece ser preciso. eu e minha mãe saímos da cozinha por instantes. o testemunho múltiplo é sempre mais coerente e preciso, são várias as versões dos poemas, suas leituras possíveis.

thomas higginson, que foi seu correspondente e tutor por alguns anos, nunca moveu uma palha para a publicar enquanto viva. higginson não a entendia e queria mudá-la, como muitos diziam o mesmo. mas o fascínio havia e usavam a palavra estranho junto a ela. acho que ler dickinson tem a ver com entrega. acho que havia um pacto de entrega em tudo que ela fazia, seja no pão, no bolo, na escrita, na relação com os pais, na relação com susan ou com outros amores. você tem que estar aberto ao choque, a ser ferido, estar disponível. é uma leitura muito corporal neste sentido. como um dispositivo de se estar. se você levar as palavras a sério não chegarás a nenhum lugar. você tem que criar sua própria teia no poema, como uma telefonista da década de 20. ah de se se ter entrega para entender que ela não está falando da morte mas da vida mais vibrante, à flor da pele. que aquelas folhas são o tesão, e o vento, em a ver com a química do pavio. que há de se confiar no desejo e não nas palavras.

 

 

dizer tem a ver aqui com encontrar. mesmo nos poemas existem supostos correspondentes. reais, físicos, mitológicos, entidades, homens, mulheres. enviar é dizer. é estabelecer sinais. por isso que é tão genial o seu livro dos Poemas de Envelope. Dickinson escrevia nos envelopes das cartas e tem algo mais significativo do que essa imagem quando falamos de sua escrita? Abra cuidadosamente diz o envelope de uma carta que ela envia a Susan Gilbert. Este é o título do livro que reuniu também as cartas de amor que Dickinson a escreveu. A carga erótica desta combinação é eficaz e quase basta para entendermos o que se situa ali. Emily escreve nos envelopes como comunica. As palavras não dizem, a impressão sim. A sua suposta presença. O poema não é a mensagem, e nunca poderá dizer nada, mas ele é o envio. O sentido. É tão interessante pensar em como, em momentos de ruptura, surpresa, urgência, em qualquer língua, as palavras se quebram em onomatopeias. Sons de sentido, soltos. Uau. Aãhn. Ihh. Um mantra temporário, um rugido, pré-palavra ou o verdadeiro recheio de qualquer palavra. É quase como uma respiração, transportada. No fundo as cartas, os envelopes por dentro estão vazios. Só temos os endereços, os nomes, a certeza de que algo chegou e algo foi enviado. uma poética dos envelopes.

 


as palavras não são deste mundo: lendo hugo hofmansthal pensando em walter benjamin

lendo o hugo hofmansthal dá para enxergar um pouco a fisionomia daquele que viu em benjamin o gênio que ninguém estava preparado para aceitar. não é o que ele diz mas como se posiciona, como posiciona cada parte de seu corpo durante sua fala. parece que quer comunicar a própria forma de agarrar o mundo e não seu objeto. o encontro é também esse agarramento sob um testemunho atento. hugo posiciona sua cabeça de tal forma ao acontecimento que é diferente na forma que posiciona seu peito ou suas mãos. ele me parece, enquanto escreve suas cartas, aquele tipo de pessoa que fala muito com os gestos e enquanto nos diz algo focamos sem querer no baile único de seus dedos quase que hipnotizados por aquela beleza não esclarecida, sugando algumas palavras soltas que usamos para dar forma aos movimentos, e no fim concordamos e temos esta sensação de que algo de fato aconteceu, algo concordamos, pois houve um ato de cativar.

enquanto hugo fala sem dizer mas, de forma tão corajosa (há de se ter coragem para ousar atravessar a linguagem na brasa do mistério cru), vemos a ternura de um coração por hora colocado em uma cena, vemos uma certa inclinação mas também dos graus dos olhos. eu quero dizer que há aqui um reconhecimento entre a ideia de atenção as pequenas coisas, na gramática benjeminiana, ao encanto poético do que o dizendo diz e não apenas o dito, mas também, há, além desta necessária empolgação, aquele mesmo tipo que viveu uma vida dupla, que tentou normalizar ou adestrar por assim dizer a sexualidade ou afetividade de amigos, dando conselhos por optar a um certo esconderijo, como por exemplo, se abastecer dos prós de uma vida heteronormativa, para sustentar seus desejos discordantes deste domínio, esconder outras formas de vida, o amor, por assim dizer.

está tudo ali de certa forma e é interessante pensar esta também ser a atitude de alguém que escreve algo como “o mundo todo é a comunicação das coisas incompreensíveis a nossa alma”, “a poesia fala através de si mesmo”, aliás, que é uma frase muito parecida a que hannah arendt usa, uma frase de heidegger, para dar conta de tecer impressões sobre walter benjamin “cada homem pode comunicar quando é ele quem diz”. “As palavras não são deste mundo, são de um mundo em si mesmo, um mundo completamente diferente”, escreve hugo. nunca diremos o que existe então temos que dizer o que só nós podemos dizer. se não dominamos as palavras, em hugo e benjamin acho que há esse reconhecimento de que não dominamos as palavras, podemos ser arranjadores de mundos neste mundo, arranjando palavras, fazendo-as sem encontrar, e transferindo toda nossa atenção não para uma pretensa correspondência legítima e literal de seus interiores científicos, mas sim para as relações. entre uma palavra e outro, as relações entre as relações. aliás, se foi as Afinidades Eletivas, o estudo de benjamin sobre goethe que fascinou extremamente hugo, ao ponto de ele entender não haver nada comparável a aquele pensamento, é justamente goethe, que justifica a sua ida a Itália, onde abandonou do dia para noite um prestigioso emprego para passar dois anos viajando pelo país, com esta frase embaixo do braço: “para preencher as palavras por dentro”.

preencher as palavras por dentro talvez tenha a ver com manchá-las no único mundo de cada um de nós e depois perdê-las por ai, botá-las para jogo. como benjamin encontrava suas citações como quem junta moedas ou folhas do chão em meio a rua, os automóveis, os sons inescrupulosos, a marcha dos guardas nos adotamos das palavras ao modo em que as colocamos nos bolsos, as conversamos, as reposicionamos em possíveis fios de mais sentidos e mais sentidos. ao norte desta palavra temos a infância, ao sul, a áustria de 1900, a leste temos uma pequena máquina de encolar charutos. a questão de se posicionar volta a tona antes do que o objeto. se para hannah, benjamin pensa assumidamente a linguagem de maneira poética (“o poema que filosoficamente torna bom o defeito das línguas é o seu complemento superior”), parece uma tentativa de assumir o erro, as bordas, os detalhes fragmentos, os aparentes defeitos como a via mais extraordinária do pensamento. e nessa escolha, as palavras não seriam talvez o meio mas cenários onde conectamos a quaisqueres mapas, cenários onde andamos, como o flâuner de baudelaire abraçado por benjamin, como o devir dos situacionistas, como as trilhas de thoreau, onde fazemos, por bem do sentido e da filosofia, nossos próprios trajetos. de todo jeito, um ato de se posicionar – um ato político, indescritivelmente.