História de um ensaio fracassado

casadabiqueira:
“ Chechnya, Grozny
The shrapnel-splattered wall of the Central Exhibition Hall
Thomas Dworzak, 1996
”
Thomas Dworzak, 1996.
  1. Proposta

Se não posso escrever o ensaio que quero, tentarei escrever o fracasso do ensaio que não consegui. A história do fracasso. O testemunho do ímpeto. A micro história dos pés das mesas. Dos rodapés. Dos herbanários colhidos nos suores do metrô. A história que não foi mas a história da vontade que também não foi.

2. Da ideia 1

Há um poema do andaluz Antonio Orihuela que diz algo assim como também sonhamos os sonhos sonhados por outros. Tudo começou com uma tentativa de dar conta da catástrofe dos noticiários. Como narrar a história do nosso tempo de dentro do acidente? Como dar nomes aos bois de dentro das ruínas, onde somos reduzidos e sobreviventes? Lembro da pesquisa que desenvolvi como bolsista do projeto de uma professora na graduação onde examinamos a memória da ditadura militar nos filmes brasileiros. Recordo da questão chave do testemunho: o testemunho é exatamente a impossibilidade de narrar. A catástrofe in loco nos coloca implica como testemunhas, portanto: não conseguir narrar é a transmissão do terror? Trauma e sonho parecem viver e morrer antes da palavra conseguir armar o bote. Antes da palavra?

3. Da ideia 2

Ou após a palavra? Se o terror corta, mitiga, devasta a capacidade de expressão verbal, como falar? A comunicação não verbal também conta uma história, talvez vá além da palavra em sua capacidade de comunicar-se. Os braços, o rosto, os diálogos sem sentido, mascarados, os aumentos de tom, a rigidez, a ausência, o choro, as rugas, o olhar, falam. Para entender nossos mortos e desaparecidos de hoje e a incapacidade de historicizar em ato, retorno aos filmes. A partir daí, tenho o ensaio: Pode a falha constituir uma comunicação primordial no testemunho de catástrofe? Quais são os papeis da imagem? Pode a falha narrar?

Isto veio a partir do filme chamado O silêncio dos outros, uma obra espanhola sobre a ditadura franquista. Mesmo após a guerra civil, o ditador continuou a impor crimes a sua população, sendo a Espanha nesse período o segundo lugar no mundo onde mais houve assassinato de civis e desaparecidos. Neste filme há duas cenas que impressionam. Na primeira uma mulher que teve a família levada e assassinada, comovida, não consegue relatar com precisão o que ocorreu. Ao invés disso quem fala por ela é uma imagem: A senhora, já muito velha, com flores, olha para uma autoestrada. Estão ali, os corpos, ela diz em um país onde os crimes nunca foram julgados. Ou os desaparecimentos investigados ou minimamente reparados. A impossibilidade de velar obstruída pela via da velocidade, do “progresso”. A outra cena tem a ver com entrevistas em estúdio de pessoas que possuem relatos dos crimes de Franco. A câmera em digital é borrada, a imagem é ruim. Há um senhor. Sempre quando ele tenta falar, não consegue. Chora, comprime-se. Mesmo assim ele aparece. Sua imagem é mantida. Este é seu relato. O que ele não conseguiu falar. Em um país mudo.

O Silêncio dos Outros' mostra que guerras nunca podem ser esquecidas -  28/02/2019 - Ilustrada - Folha

4. A partir das imagens dos filmes

Interrogando a imagem. Imagem e falha. O que os filmes Os Dias com ele e O Pacto de Adriana tem em comum em relação a isto? O primeiro é sobre um perseguido político brasileiro que hoje vive em um eterno exílio em Portugal. O segundo é sobre uma ex-funcionária do governo de Pinochet que responde a um processo por ser conivente com torturas e assassinatos, e está também no exterior. Ambos filme são feitos por uma câmera doméstica, são filmes de família não só no sentido de utilizarem imagens de arquivo de família (aqui no caso de Adriana) mas por serem feitos por pessoas com elo familiar. De uma cineasta com seu pai. De uma sobrinha documentarista com sua tia. Ambos os filmes se permitem por meio do encontro, a afetividade também modela. Nenhum filme realiza sua proposta inicial. Ambos iniciam em busca de respostas, de relatos.

A filha quer saber do pai quais foram suas memórias da perseguição, quer saber em detalhes sua jornada de resistência, sua prisão. Mas a dor, a aniquilação, te tira tudo. O pai não quer fazer o filme, a negação é a jornada. A filha insiste. Sobre o que é esse filme? Eu não entendo, ele diz. Ele chega a sugerir para ela assuntos novos para sua própria obra e não percebe que o retrato disto mesmo se constitui na história principal do filme. Não há como narrar a tortura. Não há como reviver. Os dias da filha com o pai é uma busca inútil. Como historiadora ou jornalista ela parece falhar. Ela falha em seu propósito mas é este seu filme: a perpetuação da falha. A impossibilidade: o colher de outro tipo de memória: a da fuga das palavras, a do corpo traumatizado. Dos dias repetidos, aparentemente, e do trauma como repetição. A câmera revela: o pai que tenta despistar expõe suas marcas. A câmera o engana: ele conta. Ele narra. Mesmo sem saber.

Cine Nacional exibe o documentário "Os dias com ele"

Em O Pacto de Adriana a insistência também persiste. A sobrinha quer saber de sua própria tia, sua tia favorita, a pessoa mais incrível de sua infância, se o que dizem sobre ela é verdade. Ela quer dar uma chance da tia se defender, ela parece até mesmo estar inclinada a conceber o caso como uma injustiça. A tia foge sem parar de seus questionamentos. A acusa, muda de assunto, grita. Ao invés de dar informações aos documentos, ao filme, ao invés de narrar verbalmente parece dizer com o jogo da imagem de si mesma que passa, uma comunicação baseada na informação da emoção. Raiva, desespero, medo, desprezo. Ao fim do filme, a própria sobrinha entende que o encontro entre ambas era baseado em manipulação por parte da tia, que ela tanto amava. A tia se revela em frente a câmera pelo que é, mesmo que suas palavras não a sentencie diretamente no tribunal: a verdade está a mostra. O filme fracassa em sua tentativa enquanto relato mas engrandece em colher o testemunho a partir do retrato. A memória se faz explicita, indiretamente.

O Pacto de Adriana | VEJA SÃO PAULO

5. Do ensaio fracassado

Lendo o livro de Mark Bray sobre o movimento antifascista, uma questionamento piscou: falhamos? A Comuna Parisiense de 1871 falhou? A coluna de Prestes falhou, pensemos. O movimento antifascista falhou? Uma das teses de Bray é que se o nazi-fascismo não chegou ao poder de forma institucional após a segunda guerra é porque não falhamos. Porque a esquerda organizada, os antifascistas, sempre estiveram lá nas linhas de frente, no combate. Assim como estiveram antes da Segunda Guerra, até o momento que de fato perderam. Mas esta história nunca foi contada. Por quê? Contudo, tudo está vivo. O sonho, sua disputa, vivos. Se não aconteceu algo, é um sucesso, com o nome de luta. Esta é a história ou o ponto de vista que não tendemos a nos importar. O que seria fracassar? A história do fracasso é também a história do sonho. É a história da tentativa. Enquanto se quer, se pulsa. Há um poema de Victor Heringer que começa assim: Falhar miseravelmente em tudo e absoluto. Qualquer catástrofe. A falha é a câmera ligada. O corpo como sujeito, o corpo falante. A falha no testemunho não é silêncio: é ruptura.

renzo-camplone:
“ph Cas Oorthuys
”
Cas Oorthuys.

Queria escrever um ensaio sobre a importância de contarmos a história dos fracassos. A importância dos fracasso. A sua tez democrática. Dos pequenos e dos cotidianos e dos maiores que a língua. A história do que se quis é também a história do que se é: é ouvir a todos os lados, todas as camadas. O fracasso reconduz a linguagem, talvez seria sobre isso o ensaio que não consegui escrever, eu mesma muito triste e sem cabeça, frente aos gráficos explodindo nos telejornais. Eu mesma sem esperança, embora o poema de Victor se chame esperança. O fracasso é a câmera ligada. A nossa impossibilidade falar, talvez eu dissesse de um jeito bonito e com citações de Agamben ou Benjamin, é só nossa mas não pertence somente a nós: é memória de tudo. Os nossos relatos de dor. São retratos. Os retratos das máscaras, os retratos do álcool, da videochamada, do omelete. Não há porque escrever: a linguagem escrita ou falada pode ser cárcere ou armadilha, não é máximo necessária: as fotos, as filmagens. Produzir imagens, armazenar as emoções. A saudade. Ter coragem de olhar, de olhar. O choro, o desespero, o silêncio. Encarar a autoestrada é um grande feito. Todo testemunho é válido contra o silêncio da catástrofe.

Eu queria ter escrito um texto em um dia ensolarado. Depois de fazer um café. Um texto bem organizado, sem pensamentos repetidos e truncados. Talvez vivamos em tempos truncados. Faz mais de um ano que não trago boas notícias aos amigos, que o país nos tenta nivelar ao pó. Não sei nem se seria justo falar algo coerente: historicidade a partir da linha adestrada, organizar o tempo em uma linha reta. Nem sei se tenho algo a dizer e talvez este relato sobre um texto sobre a falha na catástrofe, sobre o fracasso, realmente não tenha dito nada. Talvez tenhamos que dizer sem conseguir dizer: a estética de um tempo: qualquer coisa antes do horror ao silêncio. Qualquer afetação. Porque vamos fracassar, sempre fracassar em expor a catástrofe. Não podemos parar de fracassar.

À propósito, o poema de Orihuela termina assim:

el sueño de un soñador
que no éramos nosotros
y que nos sueña y nos deja de soñar
a la par que sueña con todo lo posible y lo imposible

dentro de un sueño
que no termina.

Dentro de um sonho que não termina.