Cheryl Clarke em três momentos

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Uma poesia que revendique e funcione como uma “destilação revelatória da experiência” não como um “jogo de palavras estéril” maestrado  pelos mais privilegiados, fáceis e falidos. Uma poesia que não é luxo, como afirma a poeta e ativista Audre Lorde em um de seus conhecidos ensaios (clique aqui). Poesia que tem sido a principal voz para pessoas pobres, a classe operária e mulheres de cor. E para estas existe fortemente a consciência de que ela não pode ser um simples adorno porque seu exercício incide diretamente sobre sua existência e liberdade.

Assim como Lorde, lembramos de Donna Haraway. Donna também possui uma postura semelhante, enxergando a escrita, como meio de autoafirmação dessas vozes, como acesso a forma política de significar, que não pode ser em nenhuma estância inocente. Dentro do que ela chama de Antropologia do Ciborgue, onde primordialmente a tecnologia é uma saída para se rebelar contra os corpos da ordem, ela percebe o poder transgressor e modificador desses textos, onde a escrita dessas mulheres se coloca como um poder de sobreviver. A sobrevivência que não é luxo como nos estabelece Lorde.

Sobre esse cenário podemos encarar os escritos vivos da poeta estado-unidense, negra e lésbica,  Cheryl Clarke.

Cheryl nasceu em Washignton, em 1947. Foi professora universitária na Rutgers University, onde lecionou por 41 anos. Escreveu diversos livros de poemas como Narratives: poems in the tradition of black women (1982), Living as a Lesbian  (1986), Humid Pitch (1989) e Experimental Love(1993). Esteve envolvida com diversas organizações como New York Women Against Rape (1985), New Jersey Women and AIDS Network, Center for Lesbian and Gay Studies at the CUNY Graduate Center e na Astraea Lesbian Action Foundation for Social Justice.

Ela considera a si mesmo com uma seguidora de Audre Lorde, tendo escrito e muito pelo impacto da obra da poeta. É imensurável a sua colaboração de vivências.Nos poemas que separamos abaixo há em comum a abordagem da temática pessoal lésbica e a potencialização da intimidade como princípio que parece ser indissociável. Além dos relatos por vezes duros, com caráter denunciante, por vezes, plenos, mas permanentemente explosivos em alguma (ou várias) de suas camadas que misturam deboche e agressividade.

Três poemas anti-traduzidos de Cheryl Clarke:

Vivendo como lésbica

Nós estamos em todo lugar e mesmo assim as pessoas brancas não nos veem.
Elas nos forçam das calçadas.
Nos confundem com homens.
Esperam que desistamos de nossos assentos para elas no ônibus.
Nos desafiam com seus rostos.
Nos temem quando estamos em grupos.
O brutal um a um.
Como o roteiro de um telejornal, toda transição frustra
a raiva. De mão em mão comigo
você conselheiro
não deixe elas ficarem entre nós
não deixe elas ficarem entre nós nas ruas.
Nós somos golpeadas pela guerra de homens loucos
gravando seus tiros em decks de fitas cassetes.

§

Living as a Lesbian

We are everywhere and white people still do not see us.
They force us from sidewalks.
Mistake us for men.
Expect us to give up our seats to them on the bus.
Challenge us with their faces.
Are afraid of us in groups.
Thus the brutal one on one.
Like a t.v. news script, every transition frustrates
rage. Hand in hand with me
you admonish
not to let them come between us
not to let them come between us on the street.
We are struck by war crazy men
recording their gunfire on stereo cassette decks.

§

vivendo como lésbica no final do ano de 1949

Os anos 40 duraram muito,
Inconstante mercador da necessidade.

Você gastou muito tempo sendo jovem, e agora precisa se render a isso quieta, como você atravessou aquela atraente desconhecida,
namorada.

(Eu não irei celebrá-la
Por ter me encontrado,
Me forçando a beijar seus pés elegantes, espalhafatosa prostituta,
Sempre me piscando e me sinalizando para baixo.)

Ela me liga.
Corre para mim.
Eu paro o carro.
Arranca minhas roupas no meio da estrada.
Perdendo meus sapatos em gramas pregadas em vidro.

§

living as a lesbian on 49’s final eve

40’s lasted much too long,
mercurial merchant of necessity.

You’ve spent a long time being young, and now must surrender it quietly, as you cross
over to that foxy stranger,
girlfriend.’

(I won’t celebrate her
for finding me,
forcing me to kiss her elegant feet, tawdry wench,
flashing and flagging me down whenever.)

She calls to me.
Runs to me.
I stop the car.
Tear off my clothes in the middle of the road.
Lose my shoes in the glass-studded grasses.

§

Greta Garbo

domingo de páscoa, 15 de abril, 1990

eu imagino você deixando Hollywood aos 36
porque você tem dinheiro o suficiente para viver como uma lésbica
e não precisa comprar a heterossexualidade
depois de Christina
eu imagino você olhando para o East River
ou na Saks com casaco de pele
e delicados sapatos perguntando
“por favor, você tem pijamas de homens?”,
uma vida de anonimidade resguardada, autonomia, alcoolismo,
sobre toda a Suíça, Riviera Francesa,
a Itália usando calças, apartamentos, chapéus floppy,
óculos escuros,
brindando uísques com barões da Alsácia
que gostam disso na bunda
anualmente no rio Reno.

§

Greta Garbo

easter sunday, april 15, 1990

I imagine you left Hollywood at thirty-six
because you had enough money to live as a lesbian
and didn’t have to buy into heterosexuality
after Christina
I imagine you overlooking the East River
or in Saks in fur coat
and sensible shoes asking,
‘please, do you have men’s pajama’s?’
a life of guarded anonymity, autonomy, alcoholism
all over Switzerland, the French Riviera,
and Italy wearing pants, flats, floppy hats,
dark glasses, and
toasting whiskey with an Alsace baroness
who liked it in the ass
yearly on the Rhine


é difícil não gostar de Raymond Carver

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I.

Carver antecipou o fim de Detroit. o fim da auréola norte-americana. lê-lo funciona como um despejar de contra-indicações para quem busca o sonho azul e vermelho. porque de certa forma lá estava ele: jovem, casado e com filhos. e lá estavam a maioria de seus personagens: jovens, casados e com filhos. e todos, absolutamente ralados. essa é a tríade urbana para o conflito.

II.

sincero. é extremamente sincero. há uma transparência em suas construções que de longe são fidedignas. como se fossem de vidro as portas das famílias suburbanas e pudêssemos observar o que se passa. e o melhor de tudo: a sinceridade se dá de uma forma direta. quase que transcrita. quase que pescada de ouvido.

III.

toda força aos detalhes. aqui está a explosão. extremamente espirituoso em seus destaques no texto. como a mulher que lambe o cabelo da boca enquanto dança em um bar, e o pai do personagem, conta como traiu sua mãe. como o homem que tira fotografias dos moradores do bairro, porém, falta as mãos. como o menino que sofreu um acidente em seu aniversário e ninguém buscou seu bolo. porque a menção? dê longe, mesmo com toda a edição dos seus textos, essas tonalidades são o que vitalizam as histórias. podiam não ser mencionadas em alguns caso mais são. a poesia de Carver é essa. detalhes. ali, aquilo, de raspão. no canto do olho.

IV.

o mundo carviano é um aeroporto conhecido. você sabe onde esta pisando. o que esperar. é tomado pelo desenrolar da história, não pelo seu fantástico fim. escute, não há fantástico nessas narrativos, pelo menos, na maioria. sim no ordinário. no cotidiano. na bebida. no amor. nos sub-empregos. nos vícios do álcool e cigarro. na falta dos sub-empregos. aquelas coisas que passam na sua cabeça e você não conta. o mundo de Carver é o mundo das pausas, de certa forma triste e melancólico. poderiam ser os mesmo personagens apesar dos diferentes nomes. sabemos onde pisamos e quem está no nosso lado. é mais fácil acreditar em quem está sobrevivendo.

V.

para onde vamos? você nunca sabe para onde a história vai o levar. o que ela quer no fundo é ser contada até o momento que desperta algo, um instinto emocional, um timing de empatia psicológica. é preciso muito pouco para se escrever algo. ele pode escrever a partir de qualquer tijolo cotidiano. pode parecer uma história de passagem. não sabemos onde vai desembocar, porque isso não importa tanto. o que surpreende é a arquitetura.

VI.

os diálogos. Carver é um mestre da conversa. das rupturas, dos tempos da fala. do não dizer dizendo com palavras. sempre com uma conexão valiosa. aliás, os pedações do texto possuem uma coesão mágica, cada partizinha puxa a outra de forma ingênua mas fluída. ler diálogos aqui é assistir a uma cena. é a não necessidade dita que faz a diferença.

VII.

é o cara. embora chamado minimalista, e com o dom da comunicação direta, Carver é múltiplo. seus poemas são aquilo que nos fazem quebrar aquelas partes intocáveis como o cheiro ou os sons internos. justo por isso: onde está seu olhar. e mais. esse olhar fala. com certa ingenuidade às vezes. com medo, temor. de forma seca abordando o que ninguém gostaria. a capacidade de remontar sem auto-condenação e de peito aberto. o registro dos tempos parados, das memórias não tão valorizadas. aquilo que se não escrevermos, esquecemos. e é esse aquilo que ele salva.

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