Arte transgênica: pensar a vida a partir do código em xeque

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BioLace Project (2010–12) , de Carolle Collet: A obra de Carolle busca debater os avanços da biologia sintética. O projeto explora a programação celular e a biologia sintética como forma de moldar a morfologia do sistema de plantas e redesenhar a engenharia têxtil com possíveis aplicações. (fonte).

Em Information Arts (2002), o pesquisador Stephan Wilson chega a declarar este o século da biologia. Vislumbra a possibilidade das novas tecnologias nos darem não só o caminho de controlar o mundo orgânico como nossos próprios corpos, o que, em sua opinião, fará a revolução eletrônica parecer brincadeira de criança. Alguns como Hervé Kampf chamam esta era de biolítica. Em 1995, Roy Ascott deu força ao uso do termo pós-biológico, termo que ficava cada vez mais em voga.

A profusão das novas tecnologias e suas aplicabilidades orgânicas, como criação de biorrobôs e cyborgs, redes neurais simuladas, algoritmos genéticos, ferramentas de edição genética, sintetizações de organismos, hackeamento entre espécies e sistemas, orgânicos e não orgânicos, apontam suas lentes para a vida em si como principal centro de debate. Frente a isso, artistas, a lembrar de Arlindo Machado, tem um dilema que envolve a busca de uma ética e uma estética para este momento.

A biologia, em especial a biotecnologia, começa a ser percebida como uma ciência da informação, em uma mudança de paradigma. A biotecnologia permite programar as informações genéticas dos seres, evocando um processo semelhante a escrita. Neste contexto podemos situar a arte transgênica. Lida por alguns críticos como parte da Arte Digital, Artes Tecnológicas, podemos observá-la como uma ramificação da Bioarte. Se na bioarte a biologia é utilizada como experiência estética, a arte transgênica parece aprofundar este tema.

Para além de organismos e ecologias, espécies, corpos, humanos e não humanos, a vida em si é repensada. Isto porque a arte transgênica trabalha com as peças fundamentais presentes em tudo que é vivo, seu código: os genes, que definem as proteínas para a criação dos aminoácidos, proteínas, enzimas, os seres. Eduardo Kac define a arte transgênica como uma proposta de uso da biotecnologia como meio de criação de seres vivos únicos, o que pode ser conseguido, por exemplo, transferindo-se genes sintéticos para um organismo, mediante a mutação dos próprios genes do organismo, ou pela transferência de material genético de uma espécie para outra. O código é o ponto de partida destas obras, que pensa a vida a partir de seu nível molecular, onde a tecnologia se consuma mais invasiva. Neste sentido, também nos permitimos questionar se, por sua natureza, a arte transgênica não acaba fazendo arte, vida e política termos, em sua presença, indissociáveis.

Microvenus (1988), de Joe Davis

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O artista codificou a imagem de uma runa e inseriu geneticamente dentro de uma bactéria. O Y e o I, sobrepostas,
significam ao mesmo tempo o feminino e o planeta terra juntos. (fonte)

Bombyx chrysopoeia (exibido em 2018, na Bienal de Arte Digital em Belo Horizonte), de Joe Davis

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Nesta obra, Davis juntamente com com auxílio de Tara Gianoulis eMariko Kasuya (Harvard) e Hideki Sezutsu do Instituto Nacional De Ciências Agrobiológicas Em Tsukuba (Japão) desenvolveram um Bicho da seda modificado geneticamente, que recebeu o gene de um tipo de espoja do mar. Por meio de diversos processos, uma das ideias da obra é a realização de um sonho antigo: poderiam, mergulhadas em metais, este novo bicho da seda ser um bicho de ouro ou bicho de prata? Outra ideia da obra seria os seres modificados absorverem partículas radioativas do ar, ajudando a limpar zonas contaminadas. (Fonte).
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GFP Bunny (2000), de Eduardo Kac: A coelha transgênica Alba pode brilhar na luz ultravioleta graças a ter incorporado em sua constituição, por via de engenharia genética, o gene GFP (proteína verde fluorescente), encontrado de forma natural em medusas. (fonte).

Bioarte: arte, vida e tecnologia

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Obra Nature? de Marta Menezes (2000). Fonte: https://www.clotmag.com/biomedia/marta-de-menezes.

Plantas conectadas à internet. Coelhos verdes, flores com genes humanos. Bactérias que escrevem poemas. Estas são algumas das criações feitas por artistas, onde o vivo se apresenta não apenas como um tema mas um meio de invenção de obras de arte. Ao fazer das mínimas peças da vida, tais como proteínas, enzimas, genes, células, bactérias, fungos, parasitas até as mais complexas, organismos, animais, plantas, biosferas, ecologias um local de manifestação artística, a bioarte gera além de novos objetos novos possíveis sujeitos e novas possíveis formas de comunicação entre eles.

É na linha de contaminação entre mundos que ela se constrói: arte, ciência, biologia e tecnologia trabalham juntas em um processo de investigação filosófica e da ordem do sensível que nos afeta tanto quanto indivíduos como sociedades. Tanto no passado, quando no futuro. Tanto os humanos quanto os não humanos. Tanto como seres vivos como quanto nossas formas de viver a vida. Tanto a vida artificial quanto a vida orgânica. E interroga a possibilidade da criação de outros mundos possíveis.

George Gessert, Marta Menezes, Joe Davis, Natalie Jeremijenko, Oron Catts, Stelarc, a dupla Christa Sommerer e Laurent Mignonneau, Eduardo Kac e o grupo Critical Art Ensemble são alguns dos bioartistas mais recentes, da segunda metade do século XX, que em seus processos criativos se utilizam de métodos científicos adaptados, submergindo um encontro recíproco entre arte e ciência. As duas faces da mesma pesquisa que auxilia a trazer o debate sobre a técnica e suas implicações ao campo de debate cultural.

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História natural do Enigma de Eduardo Kac, (2009 — data da primeira exibição). Fonte: http://www.ekac.org/nat.hist.enig.html

Mas podemos também pensar que a integração entre arte e ciência é algo que nos acompanhou fortemente ao longo da humanidade, apesar de sofrer cisões em períodos mais recentes. Stephan Wilson atenta que a observação e curiosidade é sua mesma mãe, há 30. 000 anos pessoas do paleolítico retrataram uma ampla variedade de animais, não só registrando sua anatomia como também fornecendo reflexos emocionais. Wilson chega a chamar a arte e a ciência como “centros gêmeos de geratividade cultural”. A fundação de metais, fabricação de ligas como o bronze, foi atingido a partir de ampla técnica, condições e conhecimento. Como resultando ainda está entre nós o registro estético representativo desta época. Durante anos arte e ciência se acompanharam, embora na Renascença, começassem a se especializar com maior intensidade. Leonardo da Vinci, como outros estudiosos, são exemplos da conjunção de ambos. Contudo, nos lembra Wilson, após exatamente este período, elas parecem tomar caminhos distintos, como centros periféricos da cultura.

Quando George Mendel cruzava sementes, o resultante dessa conversão genética também era avaliado conforme uma apreciação dos olhos. Para os gregos clássicos, em sua era de ouro, arte, arquitetura e matemática refletiam princípios biolóficos, que subsidiaram a renascença europeia. O trabalho conjunto de Charles Darwin com o ilustrador Oscar Rejlander e do biólogo alemão Ernst Haeckel notavelmente influenciou o expressionismo de Paul Klee estabelecendo um elo entre os campos. No final do século XIX podemos traçar alguns trabalhos envolvendo diretamente arte, ciência em relação direta com a biologia. Temos o trabalho do médico e biólogo escocês Alexander Fleming, responsável pela descoberta da penicilina, com seu método de pintura de germes, onde desenhava com bactérias de diferentes tonalidades. No início do século XX, também podemos citar o pioneiro Edward Steichen, que criava obras a partir da manipulação genética de plantas.

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Algumas das pinturas de Alexander Flemming

A partir dos anos 1980, Priscila Arantes destaca no período o início do uso de diversas tecnologias em busca tem um sistema integrado. A bioarte é um grande descendente deste caminho. Ao fazer-se uso da biologia como experiência estética, se necessita não só este conhecimento específico, como também o maquínico, do instrumento, da programação, da tecnologia — esta ferramenta. Isto somente se faz concretizado com uma vivência ampla dos aparatos técnicos e de pesquisa. Para a pesquisadora, a bioarte e arte transgênica estão no seguimento da amplitude ramificada das artes digitais e se há um tema em alto vigor neste início de século é o estatuto que o corpo humano e a própria vida, nessa confluência com o das tecnologias contemporâneas, vêm adquirindo . Não se trata de um status artístico, ou de tendência em um viés de discussão específico, pois, o que parece estar em jogo pelas poéticas tecnológicas da contemporaneidade não é somente o processo dialógico, interativo, coautoral e coletivo possibilitado pelas mídias digitais, mas também, essa dimensão ontológica que repensa a natureza do ser humano, do corpo humano, da própria vida, ela cita. Portanto, trata-se de um questionamento filosófico e universal de postulado da crise de exatidão da vida.

Na definição do pensamento do artista brasileiro Eduardo Kac, a Bioarte trabalha diretamente como o vivo, no sentido aprofundado do termo, de uma célula única aos mamíferos. Um foco nos processos da vida, pela genética e o que chama de media biotech. A síntese atômica da vida, novas formas de vida um átomo de cada vez. Usa-se propriedades da vida e seus materiais para mudar organismos ou inventar vida com novas características. Tanto estes organismos geneticamente feitos quanto sua relação com o ambiente o importa. Para ele a bioarte não deve ser vista como o uso de certas ferramentas, mas princípio literal de criação da vida. Outro ponto central seria a dedicação da bioarte em se concentrar no potencial dialógico e relacional, como interação celular, comunicação interespécies, entre outros.

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Orelha ou Braço, de Stelarc. Fonte: https://www.labiotech.eu/more-news/stelarc-ear-art-human-body/

No livro Signs of Life (2007), organizado por Eduardo Kac, em seu artigo, o pesquisador Yves Michaud tenta demonstrar que uma interessante função da nova arte não é produzir objetos mas criar experiências. Ao pensarmos isto aplicado no campo da biotecnologia Michaud acredita que a relação desta prática com a arte poderia cumprir esta proposta, e assim sendo, se transforma em uma estética da vida. A aplicação da arte contemporânea ao que Foucault chamou de estética da existência, segundo Michaud,em seus ensaios sobre biopolítica. O que significa esta estética da vida em um mundo cada vez mais conectado por sistemas tecnológicos?

Em um texto chamado Criação Científica e Criação Artística o filósofo Vilém Flusser critica o divórcio entre ciência e arte no período moderno, sustentando que esta separação destruiu o campo político tal qual existiu na Idade Média e Antiguidade. Para ele, a ciência moderna destruiu a política com sua pretensa objetividade, e a arte moderna com sua (menos pretensa) subjetividade. A política seria para ele o campo de convivência onde estas duas áreas se sobre põe, e perdido isto se ausenta a política em seu sentido humano o sentido da convivência, do coconhecimento, da covalorização, em suma: o sentido da vida. Neste pensamento toda criação científica é uma obra de arte, toda criação artística articulação de conhecimento, e juntar ambas (que no fundo compartilham acessos semelhantes), seria retornarmos com o signo da política, o que ao nosso ver, os bioartistas podem contribuir para.

A bioarte, assim como experiência de estética da vida de Michaud, podem quem sabe não só conferir um olhar atento aos avanços tecnológicos mas trazê-los a um enfoque coletivo, político, onde não apenas eticamente analisamos nossas escolhas como também reestabelecemos vínculo e criamos novas formas de significação com o mundo, implicando não só o vivo como o vital — a vida como uma prática, construção e responsabilidade.